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Geopolítica e Política

Lusa - Lusística - Mundial

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Reality Show

26.03.21 | Duarte Pacheco Pereira

Reality Show

 

Hoje, algures no Portugal profundo, aguardando a sua endoscopia, uma septuagenária, obesa, da aldeia, vestida de preto e com puxo no cabelo, diz-me que deixou de tomar há umas semanas o seu protector gástrico, “um novo, o que diz 30, umas cápsulas grandes que a médica me deu em vez dos outros, que eram uns comprimidos pequerrichinhos”. E deixou de o tomar porque “inchava a barriga”, “parecia um pandeiro”, “até me rebentavam as roupas”.

Informei o gastro, que uns minutos depois entra na sala e lhe pergunta:

Então deixou de tomar os comprimidos porque lhe inchava a barriga?

Ela responde prontamente:

Não não, era porque me prendiam as pernas.

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É o meu dia a dia. É difícil falar com estas pessoas: não sabem quase nada da sua saúde. A falta de cultura básica em Portugal anda na casa dos vários milhões de pessoas; claro que para perceber isso é preciso ir lá e falar, ver, sentir a realidade — coisa que a esmagadora maioria dos portugueses “cultos” nunca fez na vida, nem deseja fazer.

Muitos milhões ignoram que doenças têm ou que remédios tomam. A sua saúde é “a minha médica é que sabe” e “o que Deus quiser”. Não sabem nem questionam a verdade; confiam no tempo, no destino, nas autoridades, na divina providência. O fatalismo e a ignorância continuam a ser marcas profundas e bem visíveis do nosso povo.

E, fora da saúde, reconheci esses traços genéticos colectivos neste ano que passou. Mas, de forma surpreendente e perturbadora, reconheci-o sobretudo nos “outros”: nos “cultos”, nos “licenciados”, no milhão e meio “de cima”. Também neles, o fatalismo e a ignorância, bem visíveis. A confiança sem sentido nos médicos, nas autoridades, em Deus, nas notícias, em tudo. A crença inacreditável em afirmações absurdas. A aceitação acéfala de medidas acéfalas.

Para mim ficaram bem claras as razões pelas quais não posso confiar nos meus compatriotas para defender a liberdade que foi conquistada em 1974. Existem demasiadas pessoas incultas, seguidistas, acríticas, cobardes, centradas no (que julgam ser o) seu interesse mesquinho individual. Não querem saber onde está verdade, não querem saber do sofrimento dos outros.

Evidentemente, tudo isto me cansou. Um ano é muito tempo. O poeta alemão Schiller escreveu “contra a estupidez, os próprios deuses lutam em vão”. Contra esta realidade que vemos à nossa volta, também não é possível lutar para sempre. Há que aceitar a estupidez, o fatalismo e a ignorância. A pandemia deveria terminar um dia destes, mas irá prosseguir, ainda que haja apenas 1 infectado e 1 morto, porque a incultura e a desumanidade não conhecem limites.

E, no dia em que não houvesse um único vírus, a maioria dos portugueses apoiaria ainda Costa, Marcelo e Rio na manutenção do estado de emergência, pelo perigo de que “inche a barriga” ou de que “prendam as pernas”. Ou do que calhar. Tudo servirá, e todos cumprirão. É essa a essência de qualquer “reality show”: uma encenação de mentiras que o público paga — para poder assistir e para sustentar os actores.

Publicado por Pedro Girão / Médico, anestesista, pianista, contador de histórias. às 11:37 de 25 de Março de 2021.

 

Eu concordo porque eu próprio assisti a este tipo de episódios com familiares que acompanhava aos hospitais. Se questionasse a sacrossanta sabedoria do médico era doido! Quando receitava medicamentos de marca, 3 vezes mais caros que os genéricos a uma pessoa com doenças crónicas, com reforma de 300 euros dos quais 200 ficavam para despesas da casa e 100 para o auxílio. Com os 100 que lhe sobrava, mal comprava os remédios. Só a nossa ajuda a permitia comer. Mas ainda assim os médicos que sabiam as dificuldades dela não hesitavam em receitar as deogas da farmacêutica que eles queriam, mesmo com genéricos mais baratos. Aí comecei a ver a Canalhice e insensibilidade de muitos medicos que vi assistirem a familiares e outros anonimos em corredores de hospitais

Comentário publicado por Saul M Rodrigues, às 07:29 de 26 de Março de 2021, na partilha da publicação de Pedro Girão na cronologia de Rosinda Santinha.

 

 

 

 

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